02/02/2012

June

É a passividade de não lutar que deve ser banida


Disperazione, do artista italiano Mauro Brilli
Eu me deparei com uma postagem da escritora Gisele Aparecida Pereira da Silva, autora do livro June, e me identifiquei de imediato com o texto. A sintonia de ideias foi tanta, que resolvi transcrever as palavras dela aqui no blog e, além disso, promover seu livro. Mas não sem antes fazer umas indagações. Quem causa mais indignação? O flanelinha ou o motorista que se dispõe a pagá-lo? O político ladrão ou os eleitores que votam no safado? O policial que pede uma “cerveja” ou o subornador? O traficante ou o comprador de drogas? Os produtores dos programas televisivos de quinta categoria ou os telespectadores que os assistem? De minha parte, respondo que é sempre a segunda opção, pois, no meu modo de ver as coisas, o mundo não é dividido entre oprimidos coitadinhos e opressores malvados que trucidam suas pobres vítimas sem piedade (quem já leu meu livro sabe que tenho uma visão bem distante do maniqueísmo). Se o mundo é uma titica, a culpa é de todos. Em geral, o “oprimido” está nessa condição por conveniência ou porque plantou a situação para si; e o “opressor” age como age por existir uma demanda por “opressão”, ou porque o “oprimido” tem uma conivência velada com o próprio “opressor”, ou porque a coletividade tem uma preguiça estúpida de se rebelar contra o que é sabidamente errado... Bem... A Gisele não tem nada a ver com o que estou falando rs. As palavras dela só me remeteram a esse discurso que eu cultivo há tempos. Quem quiser conhecer o que essa escritora realmente tem a dizer (e parece ser algo muito bom) leia o texto abaixo.
Um grande abraço!

Na sequência, o TEXTO DA GISELE, extraído deste endereço.
Quando leio os jornais ou ligo a TV, sempre me questiono, sem pudor algum, o que realmente somos para tolerarmos tanta futilidade... É sempre a mesma coisa: uma mulher que ficou famosa por alguns dias, tirando fotos caseiras nuas e postando no Twitter; alguém que estava sambando em alguma quadra e “mostrou demais”; agressão a policiais; agressões de policiais; futebol; e um certo diretor de uma certa rede global de TV falando sobre uma certo programinha, famoso neste ano por conta de uma certa notícia de estupro...

Esse liquidificador de falta de gosto me recordou o trecho do livro, que resolvi colar abaixo... Acho que não há muita diferença entre ser um escravo, como June descreve, e um bando de ouvintes, leitores ou telespectadores que se sujeitam a alimentar esse tipo de mídia, pois afinal de contas, a UOL somente é UOL porque nós, os consumidores, a tornamos UOL; a Rede Globo somente é Rede Globo porque a tornamos Rede Globo; a política brasileira é vergonhosa porque nós, brasileiros, a deixamos se tornar vergonhosa...

Não é o ato de escravizar que deve ser combatido... É a passividade de não lutar que deve ser banida... Portanto... acho que o trecho abaixo nada mais é que uma dica...

Trabalhava com extrema compenetração, quando o diretor ingressou apressado trazendo-lhe uma denúncia sobre trabalho escravo em uma fazenda nos arredores da cidade. Recebeu a tarefa de acompanhar o trabalho da polícia junto ao local, com a missão de assegurar que os trabalhadores fossem encaminhados a instituições que pudessem ampará-los, ainda que provisoriamente.

Saiu da sede, mal prestando atenção ao rapaz que a acompanhava. Chamava-se Heitor e havia ingressado na organização há poucos dias, razão pela qual conversaram muito pouco durante o trajeto que os levaria até a fazenda.

Não foi nada fácil presenciar o horror da situação em que viviam os trabalhadores. Era uma fazenda de produção exclusivamente agrícola, onde toda a mão-de-obra era escrava. Homens e mulheres eram recrutados dentre as inúmeras pessoas que vagavam nas ruas, sem destino ou esperança, através de promessas de uma vida digna.

Era uma escravidão tipicamente contemporânea, na qual, ao invés dos castigos corporais com chicotes, as pessoas eram presas através de dívidas intermináveis.

Normalmente, ao serem trazidos para o local, os fazendeiros cobravam o transporte, a comida e a moradia, de modo que esses indivíduos trabalhavam para pagar um débito, que aumentava todo o mês, pois o saldo do ganho, ardilosamente, nunca cobria as despesas.

A situação em que eles estavam era sub-humana. Moravam em barracos em meio às rocas, sem condições de higiene, saneamento, atendimento médico, entre outros. A polícia autuou o proprietário em flagrante, enquanto os trabalhadores foram libertados e encaminhados a uma instituição que os acolheria temporariamente.

June, no entanto, não se conformava com aquele absurdo. A maioria das pessoas não desejava sair daquela situação, tampouco conseguiam perceber a escravidão em que se encontravam. A maioria vivia nas ruas, outros tinham perdido as famílias, suas casas e dignidade e viam naquele lugar a chance de possuírem comida e teto.

No fundo, eram seres humanos sem esperança e força para buscar a transformação para si mesmos. Preferiam se colocar na dependência de alguém a ter que reconstruir a vida de modo independente, ainda que para isso ficassem privados da liberdade.

(Trecho do livro JUNE, encontrado em http://loja.livrariadapaco.com.br/literatura-1/romance/june.html)

Gisele Aparecida Pereira da Silva

Um comentário:

  1. Olá, Sérgio e Luzia.
    Séria essa questão da passividade em alguns seres humanos, entretanto um frase chamou a atenção:"ao invés dos castigos corporais com chicotes, as pessoas eram presas através de dívidas intermináveis."
    A sociedade moderna está sempre criando meios de nos deixar endividados de alguma forma, seja com o banco, prestações da casa, do carro, do PC, em fim... a lista não termina.
    É só uma reflexão que me veio a mente ao ler o trecho e já ficar com vontade de ler o resto.
    Abraços,
    Cármen Machado.

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